O que é e como funciona a recuperação judicial

Número de pedidos de empresas foi recorde nos últimos três anos no país. Justiça discute modernização de lei e ex-funcionário propõe retirada dos débitos trabalhistas do processo

 

Nunca o Brasil teve tantas empresas em recuperação judicial como nos últimos três anos. Segundo dados da Serasa, empresa privada de caráter público que reúne informações de pessoas físicas e jurídicas com dívidas financeiras, houve uma explosão no número de pedidos de recuperação de micro e pequenas empresas em 2016 (1.134, ou 60% do total), recorde no número geral de pedidos deferidos pela Justiça em 2017 (614) e patamar semelhante em 2018 (548 de janeiro a novembro).

Alguns casos têm potencial para afetar uma grande quantidade de clientes e trabalhadores. Apenas em 2018, até o mês de novembro (a Serasa ainda não disponibilizou os dados de dezembro), 201 grandes empresas (com 250 ou mais empregados) haviam pedido recuperação judicial no país. Em dezembro de 2018, por exemplo, a Avianca, a quarta maior companhia aérea do país (atrás de Gol, Latam e Azul), teve seu pedido aceito pela Justiça. A dívida da companhia, que possui cerca de 5.300 funcionários, era de R$ 493,8 milhões.

Na próxima segunda-feira (14), a empresa deve perder 20% de sua frota (10 aviões Airbus A320), que eram arrendadas pela empresa Aircastle. Outras 12 aeronaves devem ser retomadas por outra empresa. Em 2017, a Avianca prestou serviço para 10,6 milhões de passageiros em voos domésticos, segundo a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Outras grandes empresas recorreram ao mecanismo para se manterem no mercado em 2018.

Os casos de 2018

SARAIVA

Com uma dívida de R$ 675 milhões, a tradicional livraria fundada em 1914 e que possuía 85 lojas em 17 estados, entrou com pedido em novembro. Em outubro, ela já havia fechado 20 lojas e demitido cerca de 700 funcionários. A Saraiva é a 54ª maior rede varejista do país, segundo o ranking Ibevar (Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo) de 2018, com faturamento de R$ 1,8 bilhão naquele ano.

LIVRARIA CULTURA

Um ano após comprar as operações da francesa Fnac no Brasil, a livraria pediu recuperação judicial, em outubro de 2018. No mesmo mês, ex-funcionários da Fnac protestaram dentro da Cultura, alegando não ter recebido direitos trabalhistas. A empresa, criada em 1947, não se manifestou. Suas dívidas chegam a R$ 285 milhões. Ao anunciar o pedido, a livraria afirmou que a medida visava “normalizar, em curto espaço de tempo, compromissos firmados com nossos fornecedores”. Em seu plano, a empresa propõe um perdão de até 70% da dívida, que seria paga em 14 anos.

ETERNIT

Líder de mercado no segmento de coberturas, a empresa produtora de materiais de construção presente no país desde 1940 (ele surgiu no Brasil como uma parceria entre empresas suíças e belgas) entrou com um pedido de recuperação judicial em março. Com uma dívida de R$ 229 milhões, a Eternit teve sua produção prejudicada pela proibição, em 2017, pelo Supremo, da venda, uso e produção de materiais com amianto, pois sua fibra é cancerígena.

EDITORA ABRIL

Fundada em 1950, a empresa fez o pedido em agosto, por conta de uma dívida de R$ 1,6 bilhão. O anúncio foi feito dias depois de a editora ter demitido cerca de 800 funcionários e encerrado algumas publicações. Seu plano era pagar apenas 8% da dívida em 18 anos. Na terça-feira (8), o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) aprovou a venda da Abril, pelo valor simbólico de R$ 100 mil, para o empresário Fábio Carvalho, especializado em comprar empresas em crise financeira.

 

O que é a recuperação judicial

O mecanismo, previsto na Lei de Falências e Recuperação de Empresas (nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005), foi criado para substituir a antiga concordata. Ela é usada quando a empresa não consegue pagar suas dívidas e quer evitar a falência. Para isso, é criado um plano para sua recuperação, enquanto as dívidas são suspensas para que a empresa consiga recuperar algum fôlego. Sob recuperação judicial, ela continua a exercer suas atividades.

 

As fases do processo

POSTULAÇÃO

O pedido de recuperação é feito. A empresa deverá expor as “causas concretas de sua situação patrimonial” e as “razões da crise econômico-financeira”. Também precisa apresentar, entre outros documentos, as demonstrações contábeis, o balanço patrimonial e a relação dos “bens particulares” dos sócios, dos credores e dos funcionários.

PROCESSAMENTO

Após a análise dos documentos, se eles tiverem cumprido todas as exigências, o juiz determina o processamento da recuperação: solicita a apresentação de um plano de recuperação no prazo de 60 dias. Esse plano deverá detalhar os meios de recuperação e sua viabilidade econômica, conter um laudo econômico-financeiro e a avaliação de bens e ativos da empresa. Também definirá a ordem de pagamento dos credores. Todas as dívidas contraídas pela empresa antes desse período de análise são congeladas, incluindo direitos trabalhistas. O juiz nomeia um administrador judicial, para intermediar as negociações entre as partes. Após o plano ser apresentado, o juiz o divulga para os credores, que têm até 180 dias para aprová-lo ou não em assembleia. Se ele não for aprovado, a falência da empresa é decretada. Caso contrário, a recuperação tem início.

EXECUÇÃO

Após decisão do juiz favorável ao processo, a empresa permanece em recuperação judicial até cumprir todas as obrigações previstas no plano por um período de dois anos. Caso não cumpra suas obrigações nesse período, os credores podem pedir que o processo seja convertido em falência. O lugar dos trabalhadores Em alguns casos, quando a recuperação judicial precede uma demissão em massa, como no caso da Editora Abril, as dívidas trabalhistas são congeladas e entram no bolo para serem pagas posteriormente. “Nós perdemos aviso prévio, férias, 13º salário, multa sobre o FGTS e multa prevista na CLT por não pagarem em dia”, escrevem as ex-funcionárias da empresa Eliana Sanches e Patrícia Zaidan, neste artigo publicado em 6 de janeiro de 2019, no jornal Folha de S.Paulo.

A lei, porém, prevê que o plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a um ano para o pagamento das dívidas trabalhistas. Caso a empresa decrete falência, os créditos trabalhistas de natureza salarial (até o limite de cinco salários mínimos) precisam ser quitados assim que houver “disponibilidade em caixa”, segundo a legislação. No artigo, Sanches e Zaidan defendem uma mudança na lei que tire as dívidas trabalhistas do processo (segundo elas, a Abril deve R$ 85 milhões aos ex-funcionários, de um total de R$ 1,6 bilhão). “É importante dar proteção judicial à empresa em crise para que se reerga, cumpra seu papel social e contribua com a economia do país. Mas a lei não deve premiar o mau empresário. Nem incluir verbas rescisórias no processo. Só assim tiraria trabalhadores de um lugar que lhes é imposto, mas a que não pertencem: um lugar onde a justiça e a dignidade se tornam conceitos cruelmente voláteis”, escrevem.

Em dezembro de 2018, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou um grupo de trabalho para tentar modernizar a atuação do poder Judiciário nesses casos.

 

Fonte: Nexo